O BARCO QUE CHAMAMOS DE NÓS
Caminho antes do sol nascer,
antes do riso,
antes do pão.
Sou o que vela sem sono,
o que sonha sem som.
Carrego nos ombros um projeto que é de todos,
ainda que, às vezes, se perca no marasmo.
Um plano que ora avança, ora estagna,
como se aguardasse outras mãos que o despertassem por inteiro.
Tenho certeza do amor que me devotam:
ele pulsa nas mãos que me abraçam,
nas palavras que me envolvem,
nos gestos que me acolhem.
Mas só o amor, embora seja o alicerce que me sustenta,
não constrói sozinho.
não move o tijolo,
não acende a lâmpada,
não afasta o vazio.
Sou marido, sou pai, sou avô,
sou rama que se estende em outras vidas,
um tronco cujos frutos expandem e florescem,
envolvendo ainda mais relações entrelaçadas,
como um círculo que cresce para além do que posso abarcar.
E em cada papel, entrego o que tenho e o que sou,
mas percebendo que grande parte do esforço vai
para o que os sonhos individuais deles exigem,
enquanto o que nos conecta,
o projeto de todos,
recebe porções menores,
restos que ainda tento transformar em alicerce.
Não é por desatenção, bem sei,
nem por falta de percepção...
Eles sentem o peso do que carrego,
mas há um instante em que o coletivo e o individual
se separam como o dia e a noite.
O coletivo às vezes surge, afaga,
mas logo se dissipa como o vento,
e resta a mim cuidar, com paciência e afeto,
do barco que juntos chamamos de “nós”.
A esperança que têm em Deus é genuína e preciosa,
mas por si só não atrai pás, tijolos e concreto.
Lei sagrada já diz:
“Esforça-te... e ajudar-te-ei.”
A esperança pode iluminar o caminho,
mas é no labor da jornada
que as pedras se tornam casa,
e que o esforço se transforma em milagre.
E em meu esforço, muitas vezes encontro solitude.
Nos instantes em que tudo parece imóvel,
recolho-me em silêncio,
não para desistir,
mas para respirar e prosseguir.
Sou aquele cuja ausência
não se percebe até o instante que falta.
Sou um pilar algumas vezes invisível,
mas tão essencial quanto o teto sobre suas cabeças.
E mesmo com todas as ausências que vivo em mim,
meu coração transborda pelo amor que recebo,
amor que silencia o cansaço,
que me ergue e me acolhe.
Tudo isso [este amor coletivo e único,
feito do que chega e do que volta]
é o que me faz seguir em frente.
Sigo porque acredito,
porque meu objetivo, ainda que desafiado,
nunca deixa de ser permanente.
Quando parece que tudo parou,
quando o impossível espreita,
é nele que me apoio.
Mesmo que o sonho tropece,
mesmo que as marés pareçam contrárias,
continuo, porque esse sonho permanece nosso,
e porque dentro dele está o amor,
que nunca deixa de ser meu horizonte.