TRÂNSITO EM JULGADO DA ALMA
Recorreram da minha essência,
como se houvesse culpa no simples ato de ser.
Mas eu era só fase de instrução,
colhendo versões, juntando provas de mim.
Ainda não era o tempo do mérito,
era só o início: rito e fim sem fim.
No juízo da vida, onde cada ato tem ônus,
não foi me dado o direito de permanecer calado.
Apresentei provas inacabadas,
laudos parciais da alma, argumentos sem convicção.
Embarguei meus próprios passos,
sem clareza de preclusão ou intento.
Fui réu e autor no mesmo processo,
interrogando-me no foro mais íntimo.
Recorri do que calaram em mim.
Agravei lembranças no rito da memória.
Chamei justiça, mas recebi
as versões frias de um passado mal lido.
Tese de acusação:
omissão, imprudência, desvio de afeto.
Contrarrazões:
era só humano, em conflito, incompleto.
Sentenciaram-me com base em precedente alheio
de outros que erraram igual.
O trânsito em julgado chegou de repente,
e o prazo para recorrer já era final.
Impugnei o conceito de culpa,
com prova nova: um olhar.
Mas o relator, meu próprio espelho,
indeferiu, sem sequer fundamentar.
Houve sustentação oral,
nas palavras que calei.
Mas o Tribunal da Consciência
não concedeu voz ao que não falei.
Justiça? Chamaram assim
o manto que escondia o vazio da razão.
Mas os registros da alma não mentem:
foram instruídos com a própria emoção.
Hoje, sem mais litígio,
sou coisa julgada, com força definitiva.
Mas guardo ainda um recurso, tênue, porém cabível:
ação revisional que traga luz à narrativa.
Quero trazer à memória
aquilo que me pode dar esperança:
o direito de reler o que fui,
e, quem sabe, mudar a sentença pelo que sou,
ou, pelo que ainda posso vir a ser.