UM CICLO A PARTIR DO CINCO
Era o quinto dia do mês que, outrora chamado Sextil, foi rebatizado em honra de um imperador, como se o gesto de nomear em tributo ao poder pudesse domesticar os dias. Mas o tempo, indócil, não se dobrou à homenagem. Seguiu, ao menos no último ano, áspero, intacto, alheio à glória alheia.
Cinco dias haviam se passado, e então sem aviso, sem remissão, o mundo colapsou dentro e fora de mim. Não foi uma queda branda, daquelas em que se escorrega. Foi um rompimento abrupto, um abalo violento.
Um deslizamento simultâneo da alma e do corpo, como se tudo que sustentava o existir – pensamentos, crenças, afetos e vísceras, houvesse sido tragado por dentro. O corpo restou suspenso entre o ir e o vir. A alma, como bússola em campo magnético inexistente, girava sem norte, sem repouso.
E o som da ruptura foi ensurdecedor, um alarde interno, ecoando nas dobras do que eu ainda reconhecia como eu.
Vieram então as cinco frustrações.
A primeira foi a da palavra: percebi que tudo que tentava comunicar era filtrado por ruídos, ruídos dos outros, ruídos meus. O que eu dizia não alcançava. Nem ao outro, nem ao alto, nem a mim mesmo.
A segunda foi a da presença, e aqui não digo de companhia física. Digo da presença invisível e silenciosa que, durante toda a vida, eu acreditava que me acompanhava, mesmo sem prova. De repente, essa presença se fez ausente. O vazio se adensou.
A terceira frustração foi a da oração. Mais que ausência de resposta, foi a incapacidade de dirigir a palavra ao sagrado. A boca seca, o peito opaco, o verbo paralisado. Orar se tornou impossível, não por falta de fé, mas por excesso de descrença em mim mesmo.
A quarta frustração foi a do compromisso quebrado. Sim, eu mesmo rompi. Não foi a primeira vez, e talvez não tenha sido a última. Mas havia algo em mim que se agarrava à ideia de manter um eixo. E, embora eu já o tivesse perdido outras vezes, dessa vez a perda foi total. O eixo se dissolveu. E o que restou foi um girar desordenado.
A quinta foi a espera. Não por alguém. Mas pela chance de voltar a ter o próprio corpo. A possibilidade de respirar sem ser traído pelo ar. Essa espera aguda, sem forma e sem promessas, escavava em mim a dúvida de continuar. Porque ela sussurrava um futuro que parecia sempre adiado, sempre além, sempre inalcançável.
Concomitantemente, vieram os cinco maus sentimentos.
O medo, não como fera, mas como bruma espessa que inunda as veias e desordena os sentidos.
O pavor, esse outro nome para o desconhecido quando ele se instala dentro.
O cansaço, que se infiltra em todas as frestas, da pele às ideias.
A insônia, esse estado de vigília que não dorme nem desperta, onde o corpo exausto repousa sem descanso e a mente sem freio semeia espinhos que florescem em silêncio.
E por fim, uma centelha ilógica de esperança. Aquela que não prometia alívio, mas resistia contra todas as evidências. Não era esperança de cura, de retorno ou de salvação. Era só a consciência de que algo em mim ainda queria seguir.
Ao quinto dia, acrescentaram-se cento e nove dias. Dias escuros, abafados, de um percurso sem setas. Nessa estrada sem luz, as frustrações e os sentimentos se confundiam e se multiplicavam. O medo tomava a forma da ausência, o cansaço se travestia de silêncio, a oração se misturava à vigília, e a espera sussurrava que jamais haveria fim.
Eu caminhava por entre paredes largas como as de uma fortaleza sem mapa, e o som de metal reverberando em metal criava uma atmosfera surda, abafada, como se o tempo ali tivesse sua própria linguagem, feita de ecos e aço. Não havia janelas. A busca pela luz era uma obsessão. E cada passo dentro desse túnel parecia confirmar a tese do impossível.
Foi então que, após os cento e nove dias, a luz do fim do túnel se escancarou. Não foi súbita, mas foi milagre. Porque só o que vem do alto poderia ter rompido aquele breu. E só o que resistia, bem aqui dentro, poderia ter suportado até que ela viesse. A claridade não se impôs por conquista, mas desabrochou como uma fenda de misericórdia, como se até o escuro, exausto de si, tivesse enfim cedido lugar ao possível.
A partir de então, duzentos e cinquenta e sete dias seguiram-se, trazendo o ritmo lento da reconstrução. E com eles, o fechar de um ciclo, trezentos e sessenta e seis dias de travessia contínua. Um ano inteiro respirando em outra frequência.
E, mesmo assim, ainda não estou curado. Talvez nunca esteja. Mas algo mudou: esses dias não me devolveram ao que eu era, me ofereceram, todavia, a alguém inédito. Alguém reconstruído nas frestas, que carrega o nome de seus abismos com dignidade. Alguém que já não gira em torno do antigo eixo, aquele que parecia centro, mas era só ilusão de estabilidade. Agora me movo por outro compasso, menos alinhado, mas verdadeiro.
O túnel não ficou para trás. Ele continua dentro de mim, não como geografia, mas como topografia interna, como marca que orienta o passo mesmo quando tudo parece de novo escuro. Nele aprendi que a luz não se vê com os olhos, se percebe com a alma cansada.
E quanto ao número cinco...não representa minhas quedas, a menos que se entenda como o número da multiplicação possível. Cinco vezes dez, como o setenta vezes sete que se pede a quem quer viver sem endurecer. Cinco como símbolo do perdão diário, inclusive o que ofereço a mim, mesmo quando ainda não sei se mereço. Do recomeço que não se calcula, mas se tenta, da graça que insiste, mesmo nos dias em que me falto.
Não digo isso por ter vencido, mas por ter compreendido que viver é prosseguir, mesmo quando a rota se desfaz diante dos olhos, mesmo quando os ventos sopram em direções que não entendo.
Prosseguir, porque há em mim um Criador silencioso e íntimo, que não se impõe, mas me sustenta. Ele é presença que não exige consciência: atua mesmo quando eu não percebo, mesmo quando o meu clamor se cala ou sequer acontece. Quando me vejo em águas profundas, Ele é a âncora que lanço ao fundo, desce pesada, firme, cortando a escuridão líquida até encontrar o chão que os olhos não veem. E ao tocar, não me prende por completo, mas me ancora: impede que eu me perca, ainda que a correnteza me empurre. Lembra-me que, mesmo no abismo, há um ponto onde sou conhecido.
E quando é tempo de partir outra vez, quando o mar já não assusta tanto, é d'Ele também que vem a vela, não a que se acende com fogo, mas a que se desfralda ao vento. A vela que se entrega ao sopro e se abre ao desconhecido. E então, mesmo sem saber o destino, sei que posso navegar.
Porque não navego só. Porque há um sopro que me conduz e um fundo que me reconhece. E isso basta para continuar.
E estou navegando.