MAGNO RIBEIRO
O poeta é um fingidor, finge tão completamente, que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente
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O Ponto de Encontro

 

Cheguei atrasado para o encontro que eu mesmo marcara com Liberdade e Segurança, meu convidados e que já me esperavam. Atrasei porque estava investindo tempo em alinhar certezas e eliminar riscos, exatamente o tipo de ocupação que, de algum modo, contrariava tanto Liberdade quanto Segurança.

Escolhera um café discreto no alto de um prédio antigo, não pelo cardápio, que era comum, mas pela vista ampla, que deixava o mundo lá fora parecer pequeno e, de certo modo, sob controle.

Quando entrei, Liberdade estava ali, com o corpo levemente reclinado sobre a cadeira, girando distraidamente o colar entre os dedos, como quem mata o tempo inventando pequenas melodias no pensamento. Segurança, por sua vez, permanecia imóvel, mãos entrelaçadas sobre a mesa, como se vigiasse silenciosamente o espaço, atento a cada detalhe. Suponho que, antes da minha chegada, conversavam num tom baixo, medindo palavras, não por receio um do outro, mas por saberem que a verdadeira discussão começaria comigo presente. Pelo que percebi quando a conversa iniciou com a minha presença, esses minutos nos quais me esperavam giraram em torno de um tema que já conheciam bem: a maneira como ambos são constantemente mal interpretados e usados de forma equivocada.

Assim que me acomodei, não houve cumprimentos formais. Minha chegada foi como uma vírgula longa no texto que eles vinham escrevendo, uma pausa breve, mas suficiente para marcar que algo mudara. Os olhos de um buscaram os do outro, como quem confirma silenciosamente que é hora de prosseguir. Então retomaram o fio, e percebi que, na verdade, apenas continuavam a mesma conversa que haviam iniciado sem mim.

Liberdade foi a primeira a falar:

— Você ainda acha que liberdade é fazer tudo?

Segurança apoiou o cotovelo no braço da cadeira, medindo o tom da voz:

— E você ainda acha que segurança é permanecer imóvel?

Ela sorriu com ironia doce.

— O problema é que, quando me confundem com permissão infinita, acreditam que posso justificar qualquer capricho, sustentar decisões impensadas ou validar a ausência de consequências. Usam meu nome para legitimar o improviso sem propósito, a quebra de pactos, a negação de responsabilidades.

Ele endireitou ainda mais o corpo.

— E quando me confundem com contenção excessiva, acreditam que devo controlar cada passo, sufocar o imprevisto e impedir qualquer risco. Usam meu nome para fixar limites sem razão, para estagnar o que poderia crescer, para encerrar histórias antes que sejam vividas.

Liberdade passou a ponta dos dedos sobre a madeira, traçando círculos invisíveis.

— Você quer estabilidade... mas muitas vezes ela é só medo bem-vestido.

Segurança ajustou a gravata, sem pressa.

— E você quer voo... mas às vezes é só fuga disfarçada de coragem.

Ela ergueu as sobrancelhas, divertida:

— Ao menos eu não finjo ser chão firme quando o mundo balança.

Por um breve momento, pensei que estava num ambiente de disputas, de quem seria melhor do que quem, principalmente quando ele sorriu de canto para dizer:

— Ao menos eu não finjo que não tenho limites quando todo corpo precisa de abrigo.

O diálogo parecia, à primeira vista, um duelo sutil, um medir de forças travestido de argumentos. Mas logo percebi que, mais do que tentar se sobrepor, um refletia a sombra do outro, como dois espelhos postos frente a frente, sem ofensas, sem pressa, apenas buscando ajustar contornos.

E eu, no meio, era apenas espectador.

Assim, percebendo que não havia entre eles qualquer rivalidade; a inquietação surgia apenas quando eu, perdido, tentava escolher um lado. Era como se a vida, diante de mim, me dissesse em dois tons de voz: não se trata de ou, mas de e.

A conversa continuou:

— O problema, Segurança, disse Liberdade, é que, quando as pessoas não sabem o que fazer, correm para você esperando que resolva tudo. E quando o fazem, perdem o risco, perdem a descoberta.
— E o problema, Liberdade, ele respondeu, é que, quando as pessoas não sabem para onde ir, correm para você, e acabam se perdendo no caminho por não terem um chão para voltar.

Nesse instante tive a sensação de que o diálogo estava se encaminhando para um ponto de convergência. Não havia mais confronto, apenas reconhecimento mútuo que, creio eu, nascia da consciência de que o que diziam compunha dois lados de um mesmo rio, como margens que se encaram, uma mesma ponte sustentada por pilares distintos, ou ainda duas faces inseparáveis de uma mesma moeda.

Liberdade apoiou o queixo na palma da mão e disse, olhando para ele:

— No fim, eu só existo porque você me dá forma.

Segurança respondeu com um leve aceno:

— E eu só me mantenho porque você me lembra que não posso ser muro.

— Então, estamos de acordo? Perguntou ela, quase num sussurro.

— Estamos, respondeu ele. — Mas amanhã conversaremos de novo, porque o equilíbrio muda todos os dias.

Ela sorriu como quem sabe que ele tem razão, e ele sustentou o olhar como quem aceita que assim deve ser.

Foi aí que chamei o garçom e pedi a conta. Enquanto eu a quitava, Liberdade e Segurança continuavam a conversar, já sem contrastes marcantes, como dois velhos conhecidos discutindo a mesma paisagem sob ângulos diferentes.

Antes de nos levantarmos, Liberdade olhou para Segurança e disse, apontando discretamente para mim:

— Ele me entende, mesmo quando não me escolhe todos os dias.

Segurança, sem desviar os olhos dela, completou:

— E ele sabe que pode contar comigo, mesmo quando não me quer o tempo todo.

Sorri. Talvez aquele fosse o maior elogio que já recebera: não pertencer a apenas um lado, mas ser o ponto de encontro onde ambos podiam se reconhecer.

Saí leve do encontro, disposto a caminhar com os dois ao meu lado. Aceitando que antes tentava controlar: que não preciso antagonizar, apenas compreender. Basta não interferir naquilo que sei que não posso mudar.

A vida, afinal, não exige que eu escolha a margem. Só que eu atravesse a ponte.

E mesmo assim, sei que não há chegada definitiva. O passo de hoje pode não servir para o dia seguinte; dúvidas e frustrações se apresentarão como neblina sobre o caminho, exigindo novos ajustes. Como disse Segurança, o equilíbrio muda todos os dias, e às vezes é preciso parar, recuar ou até esperar diante das cancelas, pagando pedágios para seguir: preços que não se medem só em moedas, mas em escolhas, renúncias e cicatrizes.

Haverá momentos em que Liberdade me impulsionará a avançar antes que o medo crie raízes; e outros em que Segurança me conterá, lembrando que nem todo avanço representa conquista. Talvez seja esse o único acerto possível: seguir, mesmo sem garantias, sabendo que, sempre, chão e vento continuarão a negociar entre si, como sempre fizeram.

WITTEMBERGUE MAGNO
Enviado por WITTEMBERGUE MAGNO em 14/08/2025
Alterado em 14/08/2025
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