MAGNO RIBEIRO
O poeta é um fingidor, finge tão completamente, que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente
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Conto Filosófico: “Poltrona 23B”

(Um diálogo entre o destino, o acaso e o viajante)

 

Embarque imediato. Portão 7.

A voz metálica anunciou o início de mais uma jornada.

A princípio, achei que viajava sozinho. Percorri o corredor estreito da aeronave com olhos atentos, procurando meu lugar. Poltrona 23B. O assento do meio. O menos desejado por muitos. O mais revelador, para quem se permite estar entre forças em constante contraste.

À direita, um homem de terno desalinhado, barba por fazer, semblante sereno e enigmático.
À esquerda, uma mulher de olhar vivo, mas inquieto, olhos que pareciam mirar horizontes que nem o avião ousaria alcançar.

Sentei-me. Mal afivelei o cinto, e o homem já puxou conversa com a intimidade de quem me conhecia há tempos:

— Eu sou o Destino, se apresentou com um leve sorriso, como quem já conhece o fim antes do início.

A mulher, sem virar o rosto, sorriu. Um riso contido, mas revelador, como quem já ouvira aquela apresentação muitas vezes.

— E eu sou o Acaso, completou com leveza, quase como quem dança ao dizer.

Intrigado, perguntei:

— Vocês se conhecem?

O Destino inclinou-se para frente, ajeitando-se na poltrona como quem tomava o manche do diálogo:

— Nos cruzamos o tempo inteiro. Às vezes, ela atrapalha meus planos.

Acaso não hesitou:

— Ou, às vezes, eu salvo a vida dele. Vai depender da rota.

— E onde eu entro nessa história? Indaguei, curioso.

O Destino me fitou, olhos firmes:

— Você é o comandante que pensa estar no controle, mas não vê que eu já tracei o plano de voo.

Acaso interrompeu com um sorriso:

— E eu sou quem troca o mapa de navegação quando você se distrai.

Fiquei em silêncio, observando pela janela o pátio movimentado do aeroporto. Voos sendo chamados. Todos com destino traçado, é verdade, mas nem todos sabem o que os espera em altitude de cruzeiro.

Mesmo os aviões mais bem planejados enfrentam turbulência, redirecionamento de rota ou atraso na decolagem.

— Então… não importa o que eu faça? Perguntei ao Destino, quase em tom de confissão.

— Importa, mas só pra você. Porque a chegada já está decidida. Respondeu ele.

O Acaso soltou uma risada leve:

— Ele adora bancar o dono da torre de controle. Mas se você não tivesse embarcado nesse voo, talvez nem conhecesse a gente.

Meus pensamentos turbulentos exigiam mais clareza.

— E quando eu erro? Perguntei, hesitante.

Destino respondeu sem vacilar:

— Não existe erro. Existe percurso. Toda turbulência tem função.

Mas Acaso balançou a cabeça:

— Existe erro sim. Mas, às vezes, é o erro que te leva ao lugar certo. Um desvio pode salvar sua rota.

Suspirei. Olhei para o teto da cabine como se buscasse uma resposta acima das nuvens. Depois, com voz baixa, perguntei:

— Com qual de vocês dois eu deveria seguir?

Destino se adiantou:

— Comigo. Só comigo. Porque apenas eu posso garantir que você pouse onde deve.

Acaso riu:

— E eu digo que deve vir comigo. Porque só comigo você descobre quem é no trajeto. E, às vezes, alterar a rota é o que mantém o voo possível.

Nesse instante, o avião começou a taxiar lentamente até a cabeceira da pista. As turbinas ganharam força, o corpo foi levemente pressionado contra o encosto e, como num suspiro longo do universo, o voo começou.

Por um momento, me pareceu que nenhuma daquelas vozes vinha de fora. Talvez fossem ecos internos. Vozes distintas de uma mesma cabine.
Talvez fossem o mesmo piloto com dois uniformes. Ou talvez não.

Olhei à direita: ninguém.

À esquerda: também vazio.

Estava sozinho.

Mas não mais o mesmo.

Ali, na 23B, compreendi: Destino e Acaso sempre viajam comigo.
Às vezes, um assume o manche. Outras, o outro altera a altitude.
Mas ambos me lembram que, na vida, não existe voo de retorno ao momento que passou.
E percebi então algo que, de algum modo, Sartre já havia dito, que não importa o que fazem conosco, mas sim o que decidimos fazer com aquilo que nos acontece. No fim, todo voo carrega marcas que não escolhemos, mas o que realmente define a viagem é como escolhemos pilotar depois da turbulência.

No meu voo, sou tripulante e comandante, mas jamais voo sem companhia.
A navegação é feita por um misto de planejamento de rota e adaptação aos ventos imprevistos.

O Destino, por mais que finja saber tudo, não decola sem a permissão da minha escolha.
E o Acaso, embora pareça errático, só se manifesta onde há espaço para o improviso da vida.

Voo encerrado. Pouso conforme o plano do Destino.

Mas nem sempre foi assim.

Houve rotas desviadas, ventos contrários, chamadas de última hora.
O Acaso já mudou meu pouso e evitou desastres.

Agora e em cada voo que ainda farei, sei: não importa quem segura o manche. Importa quem permanece a bordo, consciente de que a jornada revela mais do que o destino.
Afinal, o céu nunca foi feito de certezas, mas de possibilidades em curso.

WITTEMBERGUE MAGNO
Enviado por WITTEMBERGUE MAGNO em 14/08/2025
Alterado em 14/08/2025
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