Conto Filosófico: Audiência Interna
Ambientação: Tribunal da Consciência
Narrador: O Juiz (a própria consciência)
TERMO DE AUDIÊNCIA
PREÂMBULO
Declaro aberta a sessão do Tribunal da Consciência.
Aqui falo como Juiz e como parte.
Neste espaço sem janelas e sem relógios, compareço em mim também:
Para isso, foram formalmente convidadas duas vozes isentas, mas determinantes: Justiça, e Compaixão. Suas palavras, embora não vinculem, têm força de prova moral, e influenciarão em peso e forma a sentença a ser proferida ao final.
AMBIENTAÇÃO DA CORTE
O salão é austero, quase vazio. Nenhum adorno, nenhuma ostentação, apenas o silêncio que pesa mais do que qualquer ornamento.
Ao centro, estou eu, na condição de Juiz, sentado sob uma toga sóbria, negra como a noite que não conhece ilusões. O rosto mantém-se sereno, mas firme; a expressão, inabalável como pedra lavrada pelo tempo.
À direita e à esquerda repousam duas cadeiras idênticas, ainda vazias, destinadas a mim mesmo em outros papéis: nelas me sentarei, no momento oportuno, como Acusador e como Defensor.
O réu, que sou eu mesmo, apresenta-se de forma simples, mas correta. Usa camisa clara, bem cuidada, mas sem rigor de elegância, como quem não pretende impressionar, apenas estar. O olhar é firme, ainda que inquieto, revelando a tensão de quem reconhece o peso do julgamento, mas não foge à sua presença.
A vítima, que também sou eu, veste um traje cinza discreto, de corte sóbrio, bem arrumado, quase elegante. Nada em sua aparência denuncia a dor que carrega, pois sabe ocultar sob o tecido a vulnerabilidade. Mas, nos olhos, há uma idade que não coincide com o corpo: mais antigos, mais cansados. E no semblante, não há revolta, apenas a marca silenciosa de quem por muito tempo não recebeu acolhimento.
Comparecem agora as testemunhas.
Justiça entra com a solenidade de quem não precisa anunciar-se. É um homem de presença imponente, vestido em terno azul-escuro de risca de giz, gravata sóbria, sapatos polidos como espelhos. Sua aparência é impecável, mas sem vaidade: é a vestimenta da ordem, da medida, do peso exato. O olhar é reto, penetrante, como quem enxerga por trás das versões e das desculpas. O maxilar firme denuncia sua rigidez. Sua voz, quando se ergue, não hesita: cada palavra soa como sentença preliminar, desprovida de ornamento, mas carregada de autoridade. Ele não traz consigo afeto, apenas verdade. E sua simples presença já lembra ao réu que não há como se esconder do que se fez ou do que se deixou de fazer.
Compaixão, por sua vez, contrasta sem diminuir. Surge como mulher de presença envolvente, irradiando gravidade e ternura na mesma medida. Seu vestido, de corte refinado e tecido nobre em azul profundo, cai com natural elegância: é sinal de respeito ao tribunal, mas também de leveza, como quem sabe que até a dor pode ser vestida com dignidade. Seus olhos são vivos, mas doces; carregam lágrimas não derramadas, histórias já ouvidas e dores já partilhadas. Os gestos são pausados, quase musicais, transmitindo acolhimento antes mesmo da palavra. Quando fala, sua voz não acusa, mas desarma. Não concede perdão sem consciência, mas lembra que o humano não se mede apenas pelo erro cometido, e sim pela capacidade de reconhecer, aprender e recomeçar. Sua presença traz ao julgamento aquilo que a frieza da razão não sustenta: a possibilidade de restaurar.
DECLARAÇÕES DE COMPAIXÃO: Chamo à tribuna Compaixão.
A testemunha adentra o recinto com sobriedade. Seu semblante carrega uma serenidade que não exclui a firmeza. Ao ser instada a depor, volta-se respeitosamente ao Juízo e aos presentes, e inicia:
— Excelência, e demais aqui presentes, não venho a esta audiência para negar os acontecimentos, tampouco para suavizar seus efeitos. Reconheço que houve falhas no percurso daquele que aqui é julgado. Mas peço licença para lançar um olhar mais amplo sobre o contexto em que essas falhas se desenharam — porque o erro, quando isolado de sua origem, pode ser mal compreendido.
— O réu, desde muito cedo, foi lançado às exigências da vida. Chamado a assumir responsabilidades que excediam sua maturidade emocional, enfrentou desafios para os quais não tivera preparo. E, como era previsível, tropeçou. Os primeiros anos de sua caminhada foram marcados por improviso, por reações impensadas, por desorientação. Mas sua trajetória não se limitou a esse início.
— Com o tempo, e aqui me refiro ao tempo profundo, vivido com dor e aprendizado, houve transformação. São quase seis décadas de existência. E esse longo período, ainda que atravessado por contratempos e quedas, também produziu frutos de amadurecimento. A metamorfose foi lenta, mas constante. Sem rupturas abruptas, mas com avanços silenciosos e sempre em direção ascendente.
— O réu foi se moldando. E não o fez em meio ao conforto. Foi sob pressão, sob críticas, sob enfrentamentos contínuos, muitos deles inesperados, inclusive oriundos de quem deveria oferecer suporte. Viveu, por vezes, sob o impacto de verdadeiros fogos cruzados. Mas ainda assim, moldou-se.
— Desenvolveu uma postura sensível às dores alheias. Não por dever formal, nem por afeto seletivo, mas por empatia. Tornou-se presença frequente na vida de outros. Apoiou, orientou, sustentou como pôde. Não o fez com perfeição, mas com constância. Mesmo quando havia exaustão, insistiu em estar disponível.
— É verdade também que, em certos momentos, buscou a visibilidade. O reconhecimento de suas ações o alimentava. Havia, sim, resquícios de vaidade em seus gestos. Mas mesmo essa vaidade não anulava a autenticidade do que fazia. Ajudava porque queria ajudar e, se também gostava de ser visto por isso, que se reconheça: isso o torna humano, não indigno.
A testemunha respira com calma, volta-se ao Juízo:
— Por isso, Excelência, rogo que este tribunal considere não apenas os atos isolados que compõem a denúncia, mas o percurso inteiro. Pois diante de nós está alguém que não é definido apenas por seus erros, mas também por sua travessia. Alguém que se transformou e continua se transformando devagar, às vezes foi e talvez ainda venha a ser com tropeços, mas sempre com esforço sincero. E, ao fim, isso merece ser visto: não como absolvição automática, mas como elemento digno de reflexão e justiça.
DECLARAÇÕES DE JUSTIÇA: Autorizo a fala da testemunha Justiça.
— Excelência, começa, em tom grave, compareço para relatar com precisão os desvios cometidos pelo réu, devidamente registrados nos autos da memória.
— É verdade que ele se deu aos outros como disse a testemunha que me antecedeu. Mas é igualmente verdade que, ao fazê-lo, descuidou de si e traiu a integridade que lhe cabia zelar. O que em Compaixão se chama virtude, em Justiça se reconhece como falta: porque entregar-se sem medida não é grandeza, é abandono do dever primeiro, que era cuidar de si mesmo.
— Ele prometeu, mas não sustentou. Omitiu-se quando a ação era exigência ética. Falou quando devia calar, silenciou quando deveria defender. Não uma vez, mas reiteradamente. E se Compadeceu, fê-lo de modo desordenado, confundindo generosidade com fuga de si.
— Não alego dolo premeditado. Mas houve consciência parcial. Ele sabia. Sabia o que causaria. Sabia o que deixava escapar. E, ainda assim, deixou. A omissão, aqui, não é ignorância: é escolha, ainda que disfarçada de bondade.
— O sofrimento posterior, se houve, não apaga o ato. A Justiça não se curva à dor tardia. A Justiça reconhece feridas, mas cobra integridade. E aqui, a integridade foi fragmentada em nome da conveniência, do medo e da covardia moral.
Conclui, sem raiva, mas sem suavidade:
— A Justiça é dura não por rancor, mas por dever. O réu é responsável, e deve responder sob pena de repetir, em ciclos, os mesmos erros travestidos de intenção.
DECLARAÇÕES DA VÍTIMA: Chamo agora à palavra a vítima.
Ela se levanta. A voz não treme. Não há drama, só verdade.
— Excelência, por muito tempo fui esquecida. Não por acidente, mas por escolha. Em nome da paz aparente, fui silenciada. Em nome do outro, fui anulada. E o que mais doeu não foram as ausências involuntárias, mas as traições deliberadas em nome da ganância: a necessidade constante de ser aceito, a ânsia de ser bem-visto, admirado, a qualquer custo.
— Fui sacrificada em nome da projeção pessoal, em nome de aplausos externos, enquanto por dentro eu murchava. O réu sabia que me negava, sabia que cada passo que dava para fora era um passo para longe de mim. E, ainda assim, continuou. Sabia. E escolheu.
— Ouvi inúmeras vezes o réu dizer que faria o que precisasse ser feito, como se não houvesse freios para essa decisão. Mas a verdade, Excelência, é que esse suposto ímpeto nunca foi em meu favor. Sempre se voltou ao que estava fora, nunca ao que estava dentro.
— Não nego que houve compaixão pelos outros. Mas até nisso, eu fui esquecida. Porque para que o outro fosse acolhido, eu tive que ser abandonada. A generosidade dele custou a minha sobrevivência. E o preço, Excelência, fui eu que paguei.
— Mas não falo para punir. Não peço condenação em meu nome. Falo para existir. Para que fique registrado nos autos deste tribunal que, por trás do silêncio, havia alguém sendo deixado. Esse alguém sou eu. A vítima. E peço apenas que não seja mais apagada da história que também é minha.
Retorna ao assento. Não há lágrimas. Há um vazio antigo que deseja finalmente ser olhado.
DECLARAÇÕES DO RÉU: Dou voz ao réu. Ele se levanta. Respira. Fala como quem sabe que não tem como escapar de si.
— Excelência, começa em voz firme, não venho trazer justificativas, mas reflexões. Fiz de fato o que precisava ser feito, ou pelo menos o que se esperava de mim naquela época. Talvez hoje, com a maturidade que só o tempo ensina, muitas coisas seriam repensadas, mais bem avaliadas, mais bem estudadas. Mas, noutros tempos, parecia não haver espaço para hesitar.
— Cresci sob a exigência de sempre saber, de sempre agir, de sempre estar à frente. Havia uma pressa que me empurrava para a vida adulta antes que eu pudesse ser criança ou jovem de fato. E junto a essa pressa, uma religiosidade dura, mais voltada ao peso da culpa do que à leveza da fé. Isso não me ofereceu abrigo; ofereceu mais cobranças. Um modelo em que errar não era aprendizado, mas falha irreparável. Sob esse jugo, aprendi cedo a silenciar o que sentia e a agir mesmo sem entender.
— Sim, silenciei dores minhas para sustentar outras. Sim, deixei de me ouvir para responder ao que pediam. Se isso foi virtude ou erro, não cabe a mim decidir agora. Mas afirmo: nada foi por indiferença. Houve entrega, ainda que desordenada; houve esforço, ainda que imperfeito.
— Talvez eu tenha confundido responsabilidade com renúncia. Talvez tenha acreditado demais que amor era sempre dar, mesmo que ao custo de perder a mim. Não nego que deixei falhas, mas tampouco aceito que tudo se resuma a elas. Havia contexto, havia forças maiores que me moldavam, havia um cenário em que eu apenas reagia como sabia.
Olha para a Vítima:
— Não quis te ferir. Só não sabia mais como cuidar de mim sem abandonar quem dependia de mim lá fora.
Volta ao assento. Seu silêncio agora é inteiro.
MANIFESTAÇÃO DA ACUSAÇÃO: Assumo o papel da Acusação.
— Excelência, inicia a Acusação, em tom austero, compareço para sustentar o que já se tornou claro nesta audiência: o réu falhou. Falhou com a Vítima, falhou consigo mesmo e falhou com a verdade. E não se trata de falha eventual, mas de uma conduta reiterada, consciente, ainda que disfarçada de bondade.
— Compaixão afirmou que houve entrega, que houve cuidado com os outros. Mas o que ela chama de virtude, a Justiça já desnudou como abandono de si e abandono consciente. Porque quem é capaz de cuidar do outro, é também capaz de perceber o quanto deixa de cuidar de si. E o réu não apenas percebeu: admitiu que sabia. E, mesmo sabendo, escolheu continuar.
— A Vítima foi clara: ouviu inúmeras vezes o réu prometer que faria o que fosse preciso. Mas esse “fazer” nunca se voltou para dentro. Foi sempre voltado para o aplauso, para a aceitação, para a projeção pessoal. O discurso de entrega, aqui, não é prova de altruísmo; é prova de fuga. Fuga de si mesmo, fuga da responsabilidade de se assumir inteiro.
— E o próprio depoimento do réu confirma isso. Ele quis parecer dúbio, mas a dubiedade revela consciência. Ele disse que talvez hoje repensasse, talvez fizesse diferente, talvez estudasse melhor. Pois bem: quem fala assim, sabe que poderia ter feito de outro modo. E se poderia, mas não fez, há culpa. Simples assim.
— A religiosidade rígida, mencionada como fardo, não serve de atenuante. Serve, no máximo, como agravante moral. Porque se a fé foi vivida como peso e culpa, cabia ao réu romper, escolher outro caminho. Não o fez. Submeteu-se. Repetiu padrões. E deixou que a dureza de fora se transformasse em abandono de dentro.
— Excelência, a Acusação não pede castigo por castigo. Mas pede reconhecimento. E o reconhecimento, aqui, é de que houve falha consciente, de que houve traição à própria integridade, de que houve omissão diante da Vítima. Se houve compaixão, foi distorcida. Se houve entrega, foi desordenada. O resultado é um só: a Vítima foi deixada. E a integridade do réu, fragmentada por escolha.
— Assim, requer esta Acusação que se declare a plena responsabilidade do réu, para que não reste dúvida de que, entre omissão e consciência, ele optou pela conveniência. Que se registre nos autos que a dor posterior não apaga o ato, e que a piedade não substitui a verdade. O réu é culpado. E deve ser reconhecido como tal.
MANIFESTAÇÃO DA DEFESA: Assumo agora a Defesa, não como oposição à Justiça, mas como sua completude.
— Excelência, inicia a Defesa em tom sereno, mas firme, não nego que aqui estamos diante de um caso em que houve falhas. O próprio réu as reconheceu. Mas o que se pede a este Tribunal não é a mera constatação de erros, e sim o discernimento do contexto em que nasceram. A Justiça viu omissão; a Vítima sentiu abandono; a Acusação enxerga fuga. Mas cabe a mim demonstrar que tudo isso não basta para erguer uma condenação.
— Começo pela religiosidade apontada como peso. A Acusação diz: “cabia ao réu romper”. Pois bem: ele rompeu. Não sem custo, não sem marcas. Romper com estruturas rígidas não é um ato simples, é um terremoto íntimo. E cada rompimento trouxe cicatrizes que até hoje o acompanham. Romper foi também sobreviver. Se isso não é ato de coragem, o que seria?
— Quanto à Vítima, é preciso esclarecer: sim, ela foi esquecida em momentos cruciais. Mas também é verdade que usufruiu de toda a trajetória do réu. Viveu cada conquista, recebeu cada fruto de seu esforço. E não levantou, à época, sinais claros de revolta ou oposição. Se hoje denuncia, denuncia já com a vantagem da distância. Sua dor é real, mas não foi inocente de todo: houve certa conivência silenciosa. E a conivência, ainda que involuntária, precisa ser considerada como atenuante.
— A Acusação afirma que a dubiedade do réu é prova de consciência. Mas aqui está o equívoco: a dubiedade não é astúcia, é humanidade. É a marca de quem viveu dividido entre o dever e o desejo, entre o que era exigido e o que podia oferecer. É o reflexo de uma vida moldada sob pressa e culpa, onde cada escolha foi sempre escolha entre faltas. A dubiedade não é prova contra; é testemunho de que a verdade, neste caso, não cabe em linhas retas.
— Filosoficamente, como já disse Sartre, não somos apenas o que fazemos, mas também o que fazemos com o que nos fizeram. O réu não se construiu em vazio. Ele foi lançado em um mundo de exigências desproporcionais, e sob esse peso reagiu como pôde. Se falhou, falhou tentando cumprir, falhou tentando dar, falhou tentando sustentar mais do que tinha. Não se trata de indiferença, mas de humanidade no limite.
— Por isso, Excelência, rogo que este tribunal considere não apenas os atos isolados que compõem a denúncia, mas o percurso inteiro. Pois diante de nós está alguém que não é definido apenas por seus erros, mas também por sua travessia. Alguém que se transformou — devagar, às vezes com tropeços, mas sempre com esforço sincero.
— Condená-lo agora, com o devido respeito, seria incorrer no que o Direito conhece como bis in idem: uma punição em duplicidade por um mesmo fato. Pois este réu já vem arcando, há anos, com as consequências internas e existenciais de suas escolhas. Pagou — e ainda paga — com a exaustão moral, com as marcas profundas deixadas pelas vezes em que se afastou de si mesmo, com o fardo de uma consciência que não silencia.
— Reviver tudo isso sob o peso de uma condenação formal não seria Justiça — seria suplício. Seria submetê-lo a uma segunda pena por algo que, de certo modo, já foi purgado em sua interioridade. Seria obrigá-lo a morrer de novo por aquilo que já morreu dentro dele.
— Assim, esta Defesa pede não a negação dos fatos, mas a compreensão de seu contexto. Pede que se reconheça que a compaixão que feriu também foi virtude; que a religiosidade que oprimiu também forjou resiliência; que a Vítima, embora ferida, não foi alheia ao percurso. E, sobretudo, pede que se reconheça que absolver não é apagar a dor, mas permitir que ela não seja a última palavra.
— Excelência, se a função da Justiça é corrigir e da Compaixão é restaurar, que este Tribunal escolha não a repetição do castigo, mas a abertura do recomeço. Requer, portanto, esta Defesa, a absolvição do réu. Porque condená-lo seria obrigá-lo a carregar pela eternidade um peso que já cumpriu. E absolver, aqui, é reconhecer que o humano não se salva negando suas falhas, mas transformando-as em novos caminhos.
SENTENÇA
Tribunal da Consciência – Autos nº 0001/Consciência
Réu: Eu
Vítima: Eu
Vistos etc.
Trata-se de audiência de instrução e julgamento. Não havendo provas materiais a serem apresentadas, nem recursos a serem distribuídos, passo a editar a sentença com base exclusivamente na palavra colhida em rito próprio desta Corte íntima.
I — RELATÓRIO
Foram ouvidas as testemunhas Justiça (homem, de presença imponente) e Compaixão (mulher, de presença envolvente).
A Justiça descreveu omissões reiteradas, promessas não sustentadas e escolhas guiadas por conveniência e medo, afirmando que a entrega ao outro, quando desordenada, é abandono do dever primeiro de cuidar de si.
A Compaixão reconheceu as falhas, mas trouxe contexto formativo: fases da vida abreviadas, religiosidade rígida convertida em culpa e exigência, e um traço herdado e desenvolvido de compadecer-se dos outros, a ponto de muitas vezes deixar-se por último.
A Vítima confirmou ter sido esquecida em nome da paz aparente e da projeção pessoal, registrando que “ouviu inúmeras vezes o réu dizer que faria o que precisasse ser feito, como se não houvesse freios para essa decisão”, sem, contudo, voltar tal ímpeto para dentro. Reconhece dor e pede existência no registro, ainda que tenha, não raro, usufruído da trajetória e silenciado coniventemente perante sinais de esgotamento do réu.
O Réu falou com cautela: disse ter feito o que então se esperava; que hoje repensaria e estudaria melhor certas escolhas; apontou a pressa de crescer e a religiosidade punitiva como molduras do agir; e, por fim, dirigiu-se à Vítima: “Não quis te ferir. Só não sabia mais como cuidar de mim sem abandonar quem dependia de mim lá fora.”
A Acusação sustentou que a entrega do réu foi fuga de si, que a dubiedade atual revela consciência pretérita, e que a religiosidade não atenua: “cabia romper, e ele não rompeu com a tempo e modo”.
A Defesa refutou: houve rompimento, com custos; a dubiedade é marca humana, não artifício; a Vítima beneficiou-se do caminho e não sinalizou claramente oposição; e condenar agora seria castigo duplo, uma volta forçada ao que já foi pago na moeda da própria consciência. Requereu absolvição com medidas restaurativas.
É o relatório.
II — FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Materialidade ética.
A palavra da Justiça tem alto valor probatório quanto aos fatos (omissões, promessas não cumpridas, silêncios danosos). A Vítima corrobora, inclusive com o registro da frase performativa do réu (“faria o que precisasse ser feito”), que raramente se converteu em proteção de si.
2.2. Agravantes.
2.3. Atenuantes.
2.4. Valoração das falas.
A palavra da Justiça exibe consistência lógica, cronologia definida e aderência aos fatos: descreve omissões reiteradas, promessas não sustentadas e silêncios danosos com precisão e sem contradições internas. Nesse aspecto, fixa com alto peso a materialidade ética e a medida da reprovabilidade das condutas.
A Compaixão, por sua vez, não nega os fatos, qualifica-os. Oferece profundidade causal (formação truncada, religiosidade punitiva, traço herdado e desenvolvido de empatia desmedida) e dimensão prognóstica (capacidade de emenda e redirecionamento), elementos indispensáveis à individualização da resposta. Seu valor probatório incide menos na descrição do ocorrido e mais na interpretação da culpabilidade e na adequação da sanção.
A Vítima é verossímil e congruente ao confirmar o abandono interno, inclusive com a frase performativa (“faria o que precisasse ser feito”) que raramente se voltou para dentro. Entretanto, o silêncio conivente em certos períodos e o usufruto do percurso atenuam, sem anular, a pretensão punitiva; sua fala, assim, reforça a necessidade de proteção prospectiva da Vítima interna mais do que a de mera retribuição retrospectiva.
O Réu não apresenta confissão típica, mas um enunciado ambivalente que revela consciência dos limites, disposição à emenda e crítica ao molde formativo (pressa de crescer, religiosidade marcada pela culpa). A dubiedade, longe de artifício evasivo, denota conflito ético real e capacidade de autogoverno se encaminhada por parâmetros claros. Há, pois, lastro suficiente para medidas substitutivas que unam responsabilização e cuidado.
Síntese preparatória. O conjunto probatório estabelece a verdade dos fatos (Justiça), expõe sua causalidade e possibilidade de reparo (Compaixão), identifica o bem jurídico a tutelar daqui em diante (Vítima) e indica viabilidade concreta de cumprimento (Réu). À vista disso, a finalidade desta jurisdição não pode restringir-se ao passado: impõe-se uma resposta orientada ao porvir, sob pena de converter a sanção em reencenação estéril da dor. Com esses fundamentos, este édito se encaminha ao ponto onde se definirá a natureza restaurativa e vinculante das medidas, em respeito ao veto ao bis in idem e à função pedagógica e protetiva desta Corte.
2.5. Teleologia da resposta.
O escopo desta jurisdição não é punir por punir, mas reordenar. À luz do conjunto, impor pena punitiva equivaleria a reencenar a dor, constituindo um bis in idem existencial, ou seja, uma dupla punição pelo mesmo fato: primeiro, o réu já sofreu a pena íntima de sua exaustão moral; segundo, seria agora condenado novamente por esta Corte.
Tal solução afrontaria o princípio jurídico universal do ne bis in idem, que veda a repetição de castigo por idêntico fundamento, pois ninguém pode ser punido duas vezes pela mesma falta. Aplicar nova pena não representaria justiça, mas apenas redundância punitiva, sem acréscimo de verdade nem função pedagógica.
Por isso, impõe-se resposta restaurativa e vinculante, com restrições concretas que protejam a Vítima interna e eduquem o gesto do Réu, redirecionando sua energia não mais ao peso da culpa, mas à construção de um caminho reparador.
III — DISPOSITIVO
Julgo, pois, o réu responsável pelas omissões e desvios éticos aqui apurados.
Todavia, acolho a tese central da Defesa e, com fundamento na prevalência ponderada da Compaixão sobre a punição, ABSOLVO o réu de condenação moral continuada, substituindo-a por medidas restritivas e reparadoras, obrigatórias, pelo prazo de 12 (doze) meses, renováveis não como mera prorrogação formal, mas como sinal de que tais medidas não se esgotam no tempo cronológico.
As medidas que seguem não são apenas marco inicial de um exercício que deve tornar-se hábito, princípio permanente de vida, perene enquanto houver consciência de que a Vítima interna necessita de proteção e o Réu de disciplina.
Sendo assim, fica determinada como medida substitutiva e restauradora:
Assim, tais medidas não têm natureza de mero conselho, mas de ordem restauradora e vinculante. Substituem a pena punitiva por um caminho de emenda e cuidado, não para apagar o passado, o qual permanece como registro, mas para impedir que se repita como condenação. O Réu é, pois, absolvido da sanção retributiva, mas vinculado a estas determinações, que lhe servirão como guia de permanência. Não há aqui indulgência, mas a consciência de que a verdadeira justiça não se cumpre em duplicar dores, e sim em transformar a vida em possibilidade. A sentença, portanto, encerra-se não como fim, mas como marco de reinício, lembrando que, diante do tempo que resta, a única absolvição legítima é aquela que se traduz em vida vivida com inteireza
IV — ENCERRAMENTO
Registre-se que esta absolvição não apaga a dor, ordena-a. Que a Justiça permaneça como régua; que a Compaixão siga como remédio; que a Vítima tenha assento; e que o Réu caminhe sob limite e graça.
Publique-se na consciência.
Cumpra-se na vida.
Audiência encerrada.