Sigo, sendo...
A vida me foi dada, como é para todos: sem escolha, sem aviso, sem manual. Vim ao mundo como se vem: bruto, aberto, entregue. Essa primeira vida é a que não interferimos, apenas nos é dada, no corpo, no tempo, no lugar.
Mas houve um momento em que algo virou. Em que tomei as rédeas. Em que deixei de ser apenas conduzido e passei a conduzir. Essa é a outra vida, aquela que não se recebe pronta. É a vida que se constrói, se desafia, se reinventa. A vida que exige decisão, e que cobra presença. E foi essa vida que eu tomei para mim.
Trouxe comigo a fome de ser inteiro. De viver não segundo manuais, mas com alma. Sempre fui feito de excesso, de entusiasmo, de entrega, de intensidade. E de silêncios também, densos, profundos, quase sagrados. Carreguei fardos, muitos que nem me pertenciam, mas os abracei como se fossem parte do meu destino. E segui, muitas vezes, só. Não por escolha, mas por impulso, por achar que assim deveria ser.
E, nessa estrada feita de desvios e mergulhos, conquistei a minha própria multidão, a multidão do meu universo particular. Não uma multidão qualquer, mas feita de afetos escolhidos, cúmplices de jornada, almas que dançaram no meu ritmo, que me reconheceram antes mesmo que eu soubesse exatamente quem era. Essa multidão me chamava de lar. Me fazia inteiro.
Mas o tempo tem suas provas. E quando tudo ao meu redor desabou, quando os pilares ruíram, quando o que era sólido se desfez em poeira, essa multidão também se dispersou. A multidão do meu universo particular não resistiu ao colapso. Foi como um coral que se desfaz no silêncio. Ficaram ecos, memórias, ausências.
E, no entanto, não trago comigo frustração alguma. Muito pelo contrário. Foi nesse esvaziamento que ganhei clareza. Descobri, com gratidão madura, quem permaneceu. Quem ficou quando já não havia brilho, nem cenário, nem festa. E esses poucos, esses essenciais, foram mais do que consolo: foram revelação. Com eles sigo, mais leve, mais verdadeiro, mais atento.
Ser adulto, compreendi nesse caminho, não é repousar no que deu certo. É abrir espaço para o que ainda pode florescer. E isso exige desapego. Exige silêncio. Exige coragem.
Ainda assim, mesmo depois de tudo, acredito na beleza de viver de forma extraordinária. De ousar com leveza. De caminhar com firmeza e poesia. De buscar o invisível, de aceitar o possível e, por que não, de desejar o impossível.
Sim, o impossível. Porque há em mim uma força que não se mede por lógica ou doutrina. Um sopro sagrado que me arrasta quando minhas pernas vacilam. Não é fé apenas como se fala por aí, é presença. É o Eterno que habita em mim.
É Deus, sem nome limitado, sem forma contida, é o indizível que me move,
que me ergue, que me chama para além. É d'Ele que vem meu impulso de continuar, mesmo quando o mundo se cala. É n’Ele que repousa meu impossível.
Hoje chego ao marco de seis décadas.
E não é apenas o peso do tempo, é a profundidade dele. É o acúmulo de histórias, o esfarelamento das certezas, o burilamento da alma.
Hoje celebro minhas muitas existências, as que dançaram no meio do caos, as que silenciaram para ouvir, as que partiram para poder voltar.
Seis décadas… e ainda me reconheço em obra. Mais ser do que estar. Mais caminho do que chegada. Mais pergunta do que resposta.
Hoje é meu aniversário. Mas não sopro velas para apagar o que passou. Sopro para acender. Acendo ideias, desejos, intenções. Reacendo em mim o que nunca deve se apagar: o gesto de continuar.
Soprar, para mim, é memória e, na memória, ecoa Sartre: não somos apenas o que fizeram de nós, mas o que fazemos com o que fizeram de nós. Carrego essa verdade como bússola silenciosa. É ela que me sustenta: a liberdade de me reinventar diante do inevitável, de colher sentido mesmo no que parecia estéril, de continuar sendo, apesar de tudo, ou justamente por tudo.
Soprar, pra mim, é também o hoje, é o agora que pulsa entre o que ficou e o que ainda se anuncia. É ponte viva entre o vivido e o possível. Ecoa também em mim o pensamento de Heidegger, para quem a essência do ser humano está em sua existência, um vir-a-ser constante, um ser lançado no tempo, convocado a escolher-se a cada instante. Soprar, assim, é estar inteiro no presente, reconhecendo que o amanhã começa no gesto mais simples de agora. É aceitar que o tempo não se espera: se habita com intenção, se constrói com coragem.
Que a vida, então, siga se estendendo na medida exata da beleza.
Longa o bastante para que eu saboreie o essencial. Mas sábia o suficiente para saber quando recolher-me, antes que o corpo se torne morada de dores que já nada ensinam.
Enquanto isso, sigo, sendo.