Estado Moralista, Sociedade Escrava
Chega sempre a hora, dizia Victor Hugo, em que não basta apenas protestar. Após a filosofia, a ação é indispensável. E essa hora, trágica, decisiva e incômoda, já está sobre nós. Não há mais espaço para discursos vagos ou indignações performáticas. A injustiça, hoje, não mais se apresenta em sua forma bruta e grotesca. Ela aprendeu a usar maquiagem, a vestir toga, a falar em nome do bem. E pior: a calar vozes em nome da liberdade.
Vivemos tempos em que a censura voltou a habitar entre nós, não mais com fardas, mas com hashtags, resoluções e protocolos de proteção à democracia. Proibir um livro, calar uma opinião, controlar o humor, vetar a divergência... tudo isso agora é feito sob o pretexto da segurança institucional. O paradoxo é grotesco: para salvar a democracia, assassina-se a liberdade. Para proteger a diversidade, sufoca-se o contraditório. E quem ousa questionar esse teatro é acusado de discurso de ódio ou, ironicamente, de ser contra a democracia.
Essas concessões, essas torções da verdade feitas em nome de um bem maior, são o câncer da institucionalidade. Quando uma nação aceita suprimir direitos fundamentais em troca de proteção moralista do Estado, não há mais cidadão: há súdito. E o que é mais preocupante: o sistema passou a formar esses súditos desde a infância.
A raiz dessa tragédia está na educação. Não aquela idealizada por Paulo Freire, que virou totem ideológico e desculpa para resultados desastrosos, mas a verdadeira educação: a que ensina a pensar, argumentar, respeitar, discordar. Essa foi substituída por um currículo doutrinário, onde se aprende menos sobre lógica e mais sobre narrativas. Crianças decoram slogans antes de entender a história; discutem opressões estruturais sem saber interpretar um texto. A escola virou um palanque, e o professor, muitas vezes, um militante mal disfarçado de educador.
Formam-se adolescentes que nunca ouviram falar de Machado de Assis, Dostoiévski, Victor Hugo, Hannah Arendt ou Rui Barbosa — mas sabem de cor a coreografia de dancinhas repetidas e falas de influencers que vivem de ostentação vazia. Substitui-se Einstein por blogueiro fitness, Pascal por coach de motivação. Em vez de argumentar, reagem com emojis. Em vez de refletir, repetem frases feitas. Pensam com os polegares. Vivem de notificações. São prisioneiros da distração. E assim se perpetua a mediocridade: útil, manipulável, domesticada.
E como se não bastasse a falência do ensino, ainda há a corrosão dos pilares que sustentavam o tecido social: a família, o mérito, a fé, a responsabilidade. Todos esses valores, que durante séculos foram esteios da civilização, passaram a ser tratados como relíquias sufocantes de um passado obscuro. A esquerda, sob o disfarce do progresso, atacou sistematicamente tudo que representa ordem, limite, identidade.
A família virou repressora. O pai, figura de autoridade tóxica. A mãe, submissa por definição. A religião, um atraso. O esforço pessoal, um privilégio. A disciplina, um abuso. Nada escapa. Tudo é ressignificado com um único propósito: desconstruir. E, ao fim da desconstrução, resta apenas o Estado, esse ente inflado, paternalista, moralmente seletivo, dizendo o que se pode dizer, como se deve criar os filhos, o que é ou não é discurso permitido.
A esse quadro de inversões e decadência, soma-se a deterioração do sagrado. Num país que se diz majoritariamente cristão, o Cristo parece cada vez mais um espectador ausente — não por indiferença d’Ele, mas por abandono de seus supostos seguidores. O nome de Deus tem sido evocado com frequência, mas raramente com reverência. Igrejas se tornaram palanques, púlpitos viraram plataformas eleitorais, e o altar, moeda de troca. A aliança entre religião e politicagem, e aqui é preciso diferenciar da boa política, aquela feita com espírito público, tornou-se um espetáculo de conveniências, onde pastores negociam favores, líderes espirituais indicam cargos, e doutrinas são adaptadas conforme as pautas do momento. O sagrado, esvaziado de transcendência, virou ferramenta. Um verniz de religiosidade cobre práticas mundanas e interesses mesquinhos. O Cristo, verdadeiro, parece se desvincular desse teatro todo — como quem diz: “me incluam fora disso”.
E de todas essas instituições, educação, família, fé, esperava-se desequilíbrio, sim, mas não traição à sua essência. A Justiça, todavia, esperava-se diferente. De onde se buscava a balança, veio a espada. A Justiça, que deveria ser a última trincheira da isenção, está em crise. Quando um juiz se pronuncia como ativista, quando sentenças se alinham a correntes políticas, quando o Supremo se torna ator de narrativas e não guardião da Constituição, algo está profundamente desviado.
O que se vê hoje é a substituição do respeito pela intimidação. Não se reverencia mais a Justiça por sua sabedoria, mas se teme por sua imprevisibilidade. Juízes que deveriam ser servidores da legalidade se tornam oráculos do poder. O direito deixa de ser instrumento da razão e passa a ser arma da ideologia. O medo torna-se método. E o medo, como bem ensinou Aristóteles, é o sentimento que anula a virtude, pois onde há medo permanente, não há liberdade autêntica, só cálculo, silêncio e autopreservação.
E se hoje o acesso à Justiça já é desigual em razão da renda, imagine quando também passa a ser filtrado pelo pensamento. Não se trata apenas de quem pode pagar por um bom advogado, mas de quem pode pensar livremente sem medo de ser condenado no tribunal da opinião, ou pior: em tribunais reais, sob leis elásticas e interpretações criativas.
Chega sempre a hora em que não basta apenas protestar. Essa hora chegou. E é justamente aqui que a ação exige mais do que indignação. Ação não é vandalismo, nem silêncio cúmplice. É responsabilidade, é confronto firme com a mentira institucionalizada, é recusa consciente ao adestramento ideológico. Ação, neste tempo, é não aceitar que o erro vire regra. É ter coragem de defender verdades simples diante de intelectuais arrogantes e juízes parciais. É não se calar diante do falso moralismo, da religião de conveniência, da educação sabotada, da justiça instrumentalizada.
Se a filosofia nos ensinou a pensar, agora é hora de viver aquilo que compreendemos. Não mais como espectadores, mas como protagonistas de uma resistência lúcida. Porque quando a injustiça se fantasia de virtude, o silêncio dos justos se torna cumplicidade. E isso, a história jamais perdoa.