MAGNO RIBEIRO
O poeta é um fingidor, finge tão completamente, que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente
Capa Textos Fotos Perfil Livro de Visitas Links
Textos

A CASA DO TEMPO

(para quem acaba de chegar aos sessenta)

 

A vida, dizia Quintana,

é um dever que trouxemos pra casa.

Mas o poeta não me ensinou a lição.

Não disse em que página estavam as respostas,

nem o que fazer com as perguntas que insistem em ficar.

 

Apenas deixou sinais,

versos soltos como migalhas no caminho

e seguiu adiante, calado,

como quem sabe que o sentido não se explica,

se vive.

 

E então, num dia qualquer,

me dou conta:

já é final de tarde, já são seis horas.

 

A luz muda de tom,

o tempo já não corre, ele contempla.

Já não promete, ele revela.

 

Seis horas:

o ponto em que o dia começa a lembrar

que tudo, até o sol, tem hora de desaparecer no horizonte.

 

E é nesse instante,

quando a sombra começa a crescer mais que a forma,

que volto os olhos para trás

e revejo o caminho com mais brandura.

Como quem folheia, com doçura,

os capítulos da própria existência.

Começo, então,

a lembrar as décadas como quem toca

um álbum antigo de fotografias vivas:

 

Aos dez anos, o mundo era imenso e possível.

Tudo era agora, e o agora era eterno.

A vida cabia em uma bola, um grito, um quintal.

 

Aos vinte, meu corpo era estrada.

Caminhar era urgente,

e amar era lançar-me sem mapa.

Tinha sede do mundo

e pressa de vencê-lo.

 

Aos trinta, construí paredes.

Casa, trabalho, nome.

Troquei tempo por conquista,

e sonhos por prazos.

E ainda assim, acreditei no controle.

 

Aos quarenta, algo rangeu por dentro.

Foi a primeira grande rachadura.

Minha alma, inquieta, pediu silêncio

mas o mundo não silenciou comigo.

Comecei a procurar a mim mesmo

em fotografias, em músicas antigas,

em perguntas que não tinham remetente,

mas sempre voltavam ao meu endereço.

 

Aos cinquenta, a paisagem mudou

mas não ficou mais calma.

As urgências persistiram,

vestidas de novas obrigações e medos.

Foi um tempo de tentar manter o prumo,

entre perdas concretas e recomeços forçados,

ainda sob o peso das incertezas e das frustrações.

Mas ali também nasceu a lucidez:

Minhas rotas não se converteram em conquistas vistosas.

Os troféus que imaginei ficaram, muitos,

nas vitrines da ideia.

E foi preciso aceitar que isso também é vida,

seguir mesmo sem a cerimônia do aplauso.

 

E agora, aos sessenta,

não é tarde, é exato.

É tempo de olhar para trás sem amargura

e para frente sem ilusão.

O tempo, agora, já não ensina,

ele confirma.

 

Se me dessem uma outra volta,

não pediria outro caminho.

Mas andaria mais leve,

pensaria com mais profundidade,

e escolheria melhor os silêncios

e os sons que merecem lugar.

 

E, como Quintana,

jogaria pelo caminho

a casca dourada e inútil das horas,

porque o tempo essencial

não se marca no relógio,

mas no que de mim permanece

mesmo quando a tarde termina.

 

WITTEMBERGUE MAGNO
Enviado por WITTEMBERGUE MAGNO em 23/08/2025
Comentários