A CASA DO TEMPO
(para quem acaba de chegar aos sessenta)
A vida, dizia Quintana,
é um dever que trouxemos pra casa.
Mas o poeta não me ensinou a lição.
Não disse em que página estavam as respostas,
nem o que fazer com as perguntas que insistem em ficar.
Apenas deixou sinais,
versos soltos como migalhas no caminho
e seguiu adiante, calado,
como quem sabe que o sentido não se explica,
se vive.
E então, num dia qualquer,
me dou conta:
já é final de tarde, já são seis horas.
A luz muda de tom,
o tempo já não corre, ele contempla.
Já não promete, ele revela.
Seis horas:
o ponto em que o dia começa a lembrar
que tudo, até o sol, tem hora de desaparecer no horizonte.
E é nesse instante,
quando a sombra começa a crescer mais que a forma,
que volto os olhos para trás
e revejo o caminho com mais brandura.
Como quem folheia, com doçura,
os capítulos da própria existência.
Começo, então,
a lembrar as décadas como quem toca
um álbum antigo de fotografias vivas:
Aos dez anos, o mundo era imenso e possível.
Tudo era agora, e o agora era eterno.
A vida cabia em uma bola, um grito, um quintal.
Aos vinte, meu corpo era estrada.
Caminhar era urgente,
e amar era lançar-me sem mapa.
Tinha sede do mundo
e pressa de vencê-lo.
Aos trinta, construí paredes.
Casa, trabalho, nome.
Troquei tempo por conquista,
e sonhos por prazos.
E ainda assim, acreditei no controle.
Aos quarenta, algo rangeu por dentro.
Foi a primeira grande rachadura.
Minha alma, inquieta, pediu silêncio
mas o mundo não silenciou comigo.
Comecei a procurar a mim mesmo
em fotografias, em músicas antigas,
em perguntas que não tinham remetente,
mas sempre voltavam ao meu endereço.
Aos cinquenta, a paisagem mudou
mas não ficou mais calma.
As urgências persistiram,
vestidas de novas obrigações e medos.
Foi um tempo de tentar manter o prumo,
entre perdas concretas e recomeços forçados,
ainda sob o peso das incertezas e das frustrações.
Mas ali também nasceu a lucidez:
Minhas rotas não se converteram em conquistas vistosas.
Os troféus que imaginei ficaram, muitos,
nas vitrines da ideia.
E foi preciso aceitar que isso também é vida,
seguir mesmo sem a cerimônia do aplauso.
E agora, aos sessenta,
não é tarde, é exato.
É tempo de olhar para trás sem amargura
e para frente sem ilusão.
O tempo, agora, já não ensina,
ele confirma.
Se me dessem uma outra volta,
não pediria outro caminho.
Mas andaria mais leve,
pensaria com mais profundidade,
e escolheria melhor os silêncios
e os sons que merecem lugar.
E, como Quintana,
jogaria pelo caminho
a casca dourada e inútil das horas,
porque o tempo essencial
não se marca no relógio,
mas no que de mim permanece
mesmo quando a tarde termina.