Rebeca entre o Amor e o Tempo
Na sala onde não existia teto nem chão, apenas névoa e silêncio, dois antigos viajantes se encontraram.
De um lado, o Tempo: alto, magro, envolto numa túnica feita de segundos gastos. Os olhos carregavam o peso das horas, e seus pés não tocavam o chão, apenas deslizavam, como se nunca pudessem parar.
Do outro lado, o Amor: multiforme, feito de memórias e esperas. Trazia nos braços uma rosa viva, que exalava perfume e sangue ao mesmo tempo. Seu olhar brilhava com lágrimas que não caíam, mas ardiam.
Sentaram-se frente a frente, em cadeiras feitas de silêncio antigo.
No centro, entre eles, repousava um nome: Rebeca. Uma mulher que, naquele instante, dormia profundamente, mas não em paz. Eles vieram falar sobre ela.
Tempo:
— Ela é minha.
Amor:
— Ela me viveu.
O Tempo passou os dedos longos por um relógio de sol invisível.
— Estive com ela quando perdeu. Quando viu entes partirem, quando amores se desfizeram como neblina ao sol, quando paixões viraram cinza dentro do peito. Eu a embalei em silêncios e ausências. Fui eu quem a ensinou a esquecer.
O Amor sorriu com doçura ferida.
— Mas fui eu quem a incendiou. Eu a fiz voar sem asas. Em mim, ela se tornou verso: escrevia cartas que nunca enviava, esperava por vozes que vinham do nada, dançava na chuva como se o mundo coubesse em um suspiro. Em mim, ela sangrou e floresceu no mesmo dia. Chorei nela e sorri por ela.
O Tempo abaixou o olhar, como quem ouve o que já sabia, mas tenta negar.
— E no fim, ficaste apenas como eco. Porque tudo o que arde se apaga.
Amor:
— E tudo o que passa, esfria. Eu acendo. Tu apagas.
O nome Rebeca pulsou entre eles, como um coração hesitante.
Amor:
— Tu a envelheces. Murchas a pele, curvas os ombros, apagas as cores.
Tempo:
— Eu a preparo. Para suportar. Para continuar.
Amor:
— Mas continuar pra quê, se não for pra sentir?
O Tempo suspirou como um outono prestes a cair.
— Ela acreditava que o tempo curaria. Que um dia acordaria e não doeria mais.
Amor:
— Ela apenas cansou de doer. Mas nunca quis deixar de amar.
O Amor se ergueu um pouco mais.
— Tu prendes.
Tempo:
— E tu iludes.
Amor:
— Tu adormeces as paixões.
Tempo:
— Eu as salvo de si mesmas.
Amor:
— Eu as desperto, mesmo ferido.
Rebeca virou-se em seu sono. Um tremor. Um sussurro. Talvez uma lembrança, talvez um nome.
O Tempo a observou, sério.
— Amanhã ela não lembrará mais.
O Amor se aproximou.
— Tu passas e esperas ser esquecido. Eu fico e não me esqueço de ninguém.
O Tempo meneou a cabeça lentamente.
— No fundo... tu ainda esperas reciprocidade.
Amor:
— E tu ainda foges do presente. Só sabes caminhar. Nunca permaneces.
O Amor riu com doçura e ainda disse:
— És uma eterna criança.
Tempo:
— Eu?
Amor:
— Sim. Brincas com a ampulheta como quem derrama areia no mar. Contas os dias, mas não sabes o que habita neles.
Tempo:
— E tu és um louco. Achas que amar é vencer a morte.
Amor:
— Não vencer. Mas desafiar.
Tempo:
— E sangrar.
Amor:
— E ainda assim, florescer.
Na sala sem chão nem teto, o nome Rebeca se acalmou. Dormia agora em paz inquieta.
O Tempo, como sempre, partiu primeiro. Desapareceu sem som, sem cor, sem adeus.
O Amor ficou.
Acariciou a rosa que não morria, beijou o nome no centro da sala, e sussurrou:
— Ele aprisiona. Eu liberto.
— Ele adormece. Eu desperto.
E onde o Tempo já não estava, o Amor ainda ardia.
Nota: compus este conto a partir da canção “Resposta ao Tempo”, lançada em 1998, com melodia do pianista Cristóvão Bastos e letra do poeta Aldir Blanc. A música tornou-se um clássico da música brasileira na voz intensa e melancólica de Nana Caymmi, cuja interpretação eternizou os versos sobre o embate entre o amor e o tempo, inspirando, portanto, esta narrativa lírico-filosófica.
Na imagem, sinopse do conto e no fundo, a obra “The Night Café”, de Vincent Van Gogh.