Liberdade entre Grades e Tornozeleiras: a Tragédia da Democracia Vigiada
Dizem que a História é escrita pelos vencedores. Mas há momentos em que os vencedores não triunfam pela razão ou pela virtude. Vencem porque controlam a pena, o selo e o cárcere. Há um silêncio pesado na praça onde antes ecoavam vozes, tambores e orações. Um silêncio que não é paz, mas medo travestido de normalidade.
Há pouco, multidões foram às ruas, impelidas não por fúria irracional, mas por uma crença sincera, talvez ingênua, de que ainda viviam numa República onde o povo é soberano. Não sabiam, no entanto, que confrontar os desígnios do poder, ainda que com palavras ou passos, é ato de ousadia punível. E punível não com argumentos, mas com algemas, rotulações e censuras.
Essa lógica perversa, que prioriza a manutenção da autoridade em detrimento da virtude, não é nova. Nicolau Maquiavel, ao refletir sobre a natureza do poder, advertia que “a aparência de virtude é mais importante do que a virtude em si”. Para ele, o governante prudente deve aprender a não ser bom quando a bondade contraria a estabilidade do seu trono.
Essa reflexão maquiavélica se encaixa como luva em nosso tempo. Aqueles que controlam o aparato do Estado não mais governam para os cidadãos, mas para a perpetuação de sua própria hegemonia. A virtude virou vitrine. A retórica, escudo. A justiça, instrumento.
Basta observar como “inocentes úteis”, milhares deles, foram subitamente transmutados em “subversivos”, sem direito ao benefício da dúvida, sem julgamento justo, sem a escuta atenta que a democracia exige. Um dia, cidadãos; no outro, réus. Não por atos violentos, mas por estarem no lugar errado, na hora errada, contra o rei errado.
A estratégia não é espontânea. É deliberada. Robert Greene, em sua análise sobre as dinâmicas do poder, adverte: “Domine o tempo: antecipe-se aos eventos.” E o sistema se antecipou. Antes que vozes ganhassem corpo, selaram-lhes a boca. Antes que gestos virassem mudanças, criminalizaram as intenções.
Essa manipulação tem sido reforçada por um Judiciário que se proclama guardião da ordem, mas esquece que a lei sem justiça é apenas violência legitimada. E por um parlamento curvado, passivo, refém de suas próprias omissões, que se cala diante de arbitrariedades com a mansidão de quem teme perder o próprio privilégio.
Green também alertou: “Nunca ofusque o brilho do mestre.” E os cortesãos aprenderam bem. Bajulam, repetem, obedecem. Pois no jogo do poder, pensar por si mesmo é o maior dos riscos.
No epicentro desse vendaval, jaz um homem. Não morto, mas enterrado vivo. Enterrado não com pás, mas com decretos, narrativas e farsas processuais. Sua voz, antes ouvida por multidões, foi reduzida a ruído incômodo no tribunal da conveniência. Suas ideias foram vigiadas, seus ideais reinterpretados, e agora até seus passos domésticos são policiados. O novo poder estatal não quer apenas calar, quer humilhar. Quer destruir impunemente, como um recado, como um aviso: "a desobediência será esmagada, e o dissidente será exposto como troféu da submissão".
Eis que ele se vê às portas de um julgamento que já aconteceu. A sentença foi escrita antes da denúncia. A culpa foi presumida antes da apuração. A pena veio antes do que chamam de crime. Não há mais justiça, apenas teatro. Não há mais processo, apenas um cerimonial de condenação. Trata-se de uma farsa jurídica disfarçada de legalidade, um ritual moderno de crucificação pública.
Neste cenário de distorções e silêncio cúmplice, a mentira tornou-se política de Estado. Como escreveu Affonso Romano de Sant’Anna: “Mentiram-me ontem e hoje mentem novamente. Mentem de corpo e alma, completamente. E mentem de maneira tão pungente que acho que mentem sinceramente. Mentem sobretudo, impunemente... E de tanto mentir tão bravamente, constroem um país de mentira, diariamente.”
E é exatamente isso que se edifica diante de nossos olhos: um país de mentira. Uma democracia de fachada. Um sistema que fabrica criminosos para proteger o crime de governar sem oposição. A história, então, já não se antecipa ao futuro, ela o denuncia. Esta não é apenas uma reflexão. É uma notícia do amanhã contada hoje. Porque já sabemos o desfecho. O veredito virá, previsível como o dia que sucede a noite.
E, nesse sepultamento em vida, não se destrói apenas um homem. Destrói-se a ideia de que alguém ainda possa levantar-se contra o trono sem ser esmagado.
E o mais perturbador não é a ação dos que o perseguem, mas a omissão dos que poderiam agir e não agem. Pois há sim, e não são poucos, aqueles que possuem voz, influência, tribuna e força para clamar por justiça. Mas se calam. Temem a devoração que acomete os dissidentes. Com isso, tornam-se cúmplices do sepultamento moral de quem ousou desafiar o trono.
Contudo, não se pode esquecer de um ator ainda mais decisivo: o próprio povo. Este, que possui nas mãos a arma mais poderosa de uma democracia, o voto, tem se mostrado, muitas vezes, prisioneiro da própria ignorância política ou da conveniência imediata. Insistem em recolocar no poder os mesmos que perpetuam o sistema que os oprime. Escolhem seus algozes, revestidos de discursos doces, promessas fáceis ou slogans de empatia artificial. Ao ignorar os sinais, ao se omitir do dever de pensar criticamente, o povo abdica da sua soberania. Transforma sua liberdade em servidão voluntária. E assim, passa a ser não apenas vítima da injustiça, mas seu reprodutor inconsciente. O grande paradoxo é que, em nome da estabilidade ou de ilusões ideológicas, legitima-se a prisão da própria verdade.
Por tudo isso, a iniquidade alcança uma densidade tal que parece zombar até mesmo da justiça divina. Em certos momentos, a dor dos justos é tamanha que até o Céu parece calado. Como se a própria justiça de Deus estivesse cega, ou pior, conivente.
Mas essa é uma ilusão gerada pela dureza do coração humano. Na verdade, o que ocorre é que a justiça divina continua perfeita e imutável. Deus é o próprio padrão da justiça. Ele é a antítese da injustiça, que é atributo maléfico. O problema está em nós, que fomos chamados para ser agentes dessa justiça, mas ignoramos esse papel. Quando deixamos de fazer o bem, não é Deus que falha. Somos nós que abandonamos a nossa vocação como portadores de Sua imagem.
O conceito de Justiça Divina e a realidade da injustiça humana frequentemente colidem, gerando dilemas éticos e morais que expõem não apenas os limites das instituições, mas os da alma humana. A injustiça no mundo, como ensina o pensamento cristão, não é sinal da ausência divina, mas sim consequência da liberdade humana mal-usada. A impiedade e a injustiça são ações humanas que reprimem a verdade. Não são punições de Deus, mas frutos diretos da escolha dos homens.
A presença de Deus, ainda que silente, continua sendo o pilar da esperança dos que clamam por retidão. Pois Ele é descrito como um juiz justo, que trará justiça definitiva e eliminará toda a dor e sofrimento no tempo oportuno. Enquanto isso, a consciência humana, essa capacidade de sentir e perceber a injustiça, é, por si só, reflexo da Lei Natural inscrita em nós. Um sinal da presença divina que nos cobra agir.
E talvez essa seja a tragédia silenciosa de nosso tempo: o esquecimento de que a justiça não é um expediente burocrático, mas um reflexo do divino. O coração humano, quando endurecido pelo poder, se torna impermeável ao clamor do justo e, assim, alimenta o ciclo de opressão que, mais cedo ou mais tarde, recairá sobre todos.
O tempo é o juiz final. E a justiça de Deus, embora não se curve aos relógios dos homens, virá. A certeza de que o mal será desmascarado, de que o justo será vindicado, é o que sustenta a esperança dos oprimidos.
Mas até lá, o que diremos aos filhos da verdade, senão que foram abandonados por seus irmãos? Que tipo de sociedade estamos construindo, onde defender o bem se tornou perigoso, e calar-se diante do mal, conveniente?
Se tudo isso é para salvar a democracia, talvez estejamos matando-a em nome de si mesma.
Maquiavel, com seu olhar profundo sobre a natureza humana, alertava que “a crueldade bem usada pode ser justificada, mas mal-usada destrói quem a emprega.” Que o poder ouça. Pois a História há de cobrar. E Deus, que tudo vê, não falhará em pesar cada silêncio, cada omissão, cada injustiça praticada em nome da ordem.
Até lá, que os justos tenham coragem de permanecer de pé, mesmo quando o mundo inteiro mandar que se ajoelhem.
E escrevo estas linhas tomado por uma indignação que me corrói, mas também pela culpa de ser mais um entre tantos que apenas assiste, de braços cruzados, sob a cômoda justificativa de que nada posso fazer. Reconheço, com vergonha, que sou parte dessa multidão que lamenta, comenta e se entristece, mas se cala, teme ou se distrai e assim, consente. Somos muitos, e isso, ao invés de consolo, é sentença. Porque na soma de tantas omissões, de tantos “não é comigo”, vai se fortalecendo o império da injustiça.
E como não poderia deixar de ser, permito-me, ainda que brevemente, passear pelo campo poético, esse refúgio onde a razão encontra repouso e a alma, expressão. E é nesse caminhar que me deparo com Vinicius de Moraes, em sua "Dialética", cuja conclusão ecoa com dolorosa precisão o sentimento que me habita: “Mas acontece que eu sou triste.” Após celebrar a beleza da vida, do amor e da esperança, o poeta reconhece, ao fim, a sombra que persiste, a tristeza que resiste mesmo em meio às promessas de alegria. E talvez seja essa também a minha verdade: sei que a vida é boa, que ainda há o que amar, que há motivos para lutar… mas acontece que eu sou triste. Triste por ver a injustiça avançar. Triste por saber. Triste, sobretudo, por nada fazer.