MAGNO RIBEIRO
O poeta é um fingidor, finge tão completamente, que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente
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Crônica: O que desejo ainda não tem nome

 

A manhã começa com um silêncio que não é ausência de som, mas presença de tudo o que ainda não se disse. O céu, ainda indeciso entre a noite e o dia, deixa que o sol se anuncie devagar, como quem respeita o tempo das coisas. A luz infiltra-se pelas frestas da janela como um segredo antigo, sussurrando sobre recomeços.

Os que dormem, dormem intensamente, uns aqui perto, respirando fundo como se a vida fosse um lago sereno; outros distantes, imersos em sonhos que talvez os libertem da realidade ou os aprisionem ainda mais. Há um universo extenso em repouso, sem saber que desperto.

Mas sei que, em algum lugar, há olhos que já se abriram com pressa. Gente que acorda antes do sol, não por escolha, mas por urgência. Estão atentos à rotina que garante o pão, ao medo que ronda as esquinas, à matemática da sobrevivência. Para alguns, a manhã é uma batalha disfarçada de cotidiano. Comigo, por vezes também é assim.

Mas agora, aqui comigo, só os pássaros despertaram cedo. Cantam com uma leveza que me constrange, como se não soubessem da gravidade que pesa sobre o mundo, ou soubessem e cantassem justamente por isso. São os primeiros a dizer “estamos vivos”, e talvez os únicos a celebrar isso sem pedir mais nada em troca.

E então, nesse cenário de luz morna e canto alado, retorno ao silêncio que não é vazio, mas sim morada de sentidos. E me reconheço: alguém que, embora não tenha ambição de ser poeta, é poeta por necessidade, por sobrevivência da alma, por solitude. “Ser poeta não é a minha ambição, é a minha maneira de estar sozinho”, escreveu Fernando Pessoa, e nesse verso há uma janela aberta dentro de mim.

Há quem sonhe com o inalcançável, há quem se resigne ao vazio. Eu não. Eu sou o que transborda entre esses extremos. Eu desejo com fúria o possível, ainda que seja preciso atravessar desertos para tocá-lo. Amo o finito com intensidade infinita. Quero tudo, ou um pouco mais, se for permitido. Não é gula, é fome. Não é vaidade, é sede. Uma sede de mundo que não se sacia com mapas. Há algo em mim que ultrapassa o nomeável, que se ergue como um chamado, uma vibração que me exige movimento, mesmo que seja só para dentro. Porque minha existência é esse anseio que não sabe se contentar.

E, nesse exato instante em que reconheço essa fome que me move, quase posso ouvir, nítidas, sorridentes, as palavras do meu saudoso pai: "meu filho, tu pareces que estás sempre a desafiar a lei da gravidade." E talvez ele tivesse razão. Talvez eu viva mesmo a alguns centímetros do chão.

Minha vida, enfim, é um ato de resistência. Não uma resistência heroica ou altiva, mas aquela silenciosa, cotidiana, feita de fôlego e palavra. E nesse ato, respiro. Registro. Faço da escrita uma forma de contenção e de libertação. Porque quando tudo ao redor ameaça ruir, a poesia me serve de dique para não transbordar, de pá para recolher os escombros, de disfarce para atravessar os dias cinzas, de sonho para suportar as noites em desvario.

Manoel de Barros, com sua sabedoria delicada, disse que “há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.” E talvez seja justamente nesse nada que mora a essência do que sinto quando estou só, aquele silêncio cheio de sentido que me acompanha quando as palavras se escondem, mas a poesia insiste em existir. Porque esse dizer nada é, na verdade, o modo mais autêntico de me dizer inteiro.

E então, do outro lado do mar, Mia Couto parece me estender a mão e completar o pensamento: “não me basta ter um sonho. Eu quero ser um sonho.” Como se dissesse que, do silêncio ao devaneio, há um percurso onde a poesia não apenas se escreve, ela se encarna. Há nisso uma entrega que me comove, porque compreendo que esse dizer nada de Manoel é o momento em que sou só pensamento flutuando no escuro, e ser um sonho, como quer Mia, é o ato de transformar esse escuro em existência.

É nessa fusão que me encontro: calado, mas pleno de dizeres. Só, mas cheio de mundo. Sem palavras, e ainda assim, poema. Quero ser o que sonha, o que finge, o que cala e, mesmo assim, transforma. Quero ser esse silêncio verdadeiro que só a poesia permite e, se puder ser, um sonho que alguém ainda se lembrará de ter tido.

E, se posso tentar dizer o que quase nunca se diz, digo com Clarice Lispector: “liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.” Não sei nomear, mas sei sentir. E sigo, ainda assim. Escrevendo. Resistindo. Sonhando. Porque mesmo quando o mundo parece querer me apagar, eu insisto em acender pequenas luzes com palavras.

E nisso, talvez, resida a minha utopia.

WITTEMBERGUE MAGNO
Enviado por WITTEMBERGUE MAGNO em 30/08/2025
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