A casinha do “ioiô”...
Ser avô não é simplesmente viver de novo a paternidade. É mais do que isso. É experimentar uma vida dentro da vida, um renascimento quando já acreditávamos que o tempo nos havia ensinado tudo.
Samuel e Sophia são a prova disso. Samuel, com sete anos, é serenidade em forma de menino. Seus olhos guardam um silêncio que me acalma, como se já soubesse que a vida exige mais contemplação que pressa. Ao lado dele, reaprendo a arte de descansar por dentro.
Sophia, com dois anos, é a chama que se recusa a ser domada. Firme, decidida, cheia de vontades, ela avança sobre o mundo como se fosse seu. E, de certo modo, é mesmo. Sophia me ensina a não me conformar com o tempo, a desejar ainda o impossível, a manter o coração em rebeldia contra a mesmice.
É no convívio com eles que entendo: ser avô é influenciar e, ao mesmo tempo, ser moldado. Eu os conduzo, sim, mas eles também me recriam. Neles me descubro mais paciente, mais terno, mais verdadeiro.
E como me comove o desejo que eles têm pela minha presença. A casa do vovô não é apenas casa, é santuário. É refúgio e aventura. É a casinha do “iôiô”, símbolo de habitar junto, de ter um lugar só nosso. É o choro de Sophia que, de repente, se cala quando se vê confrontada pelo espelho, como se o reflexo fosse uma voz a lembrá-la de que está protegida. É o chocolate que se disfarça de queijo branco para despistar os pais e guardar em segredo a cumplicidade deliciosa que só avós e netos conhecem. É a alegria intensa de me receberem, seguida sempre pela tristeza funda das despedidas, tristeza que, paradoxalmente, também me alegra, porque revela a grandeza do vínculo que nos une.
Samuel e Sophia não são apenas continuidade de minha história. São reinvenção dela. Neles encontro aquilo que a vida adulta havia roubado: a eternidade dos instantes simples, o riso sem cálculo, a poesia do inesperado.
Mas é também nesse reconhecimento que sinto a dor mais aguda: a de saber que talvez eu não acompanhe todas as conquistas que a vida reservará a eles. Talvez já não me seja possível estar presente em cada passo, não por ausência de amor, mas porque o tempo cobra de nós sua parte. Talvez não os veja quando se tornarem adultos, quando construírem suas casas, quando embalarão nos braços os filhos que ainda virão, os filhos dos filhos, que prolongarão em mim o mistério da eternidade. Quando esse instante chegar, o palco será só deles, e eu estarei ausente na carne, mas presente no invisível.
E o meu legado, além do amor que lhes ofereço com toda a inteireza que ainda me habita, é também o tempo que compartilho com vocês, meus netos, e o tempo que vocês me oferecem em troca. Porque esse tempo, vivido em risos, em gestos, em histórias inventadas ou lembradas, é o que poderá carregar, mesmo depois da minha partida, a memória do que foi viver com o vovô Magno. E memória, quando verdadeira, não se desfaz: ela é eternidade em forma de afeto.
Sartre dizia que “não somos apenas o que fizeram de nós, mas o que fazemos com o que fizeram de nós”. Pois que vocês, meus netos, façam daquilo que receberam de mim, meu amor, meu tempo, minhas histórias, minha ternura e também meus silêncios, a ponte para tantas gerações que virão. Sei que agora talvez não entendam a grandeza desta declaração, porque ainda vivem o tempo leve da infância. Mas guardem estas palavras: um dia, quando o peso da vida os alcançar, compreenderão que aqui está o mais verdadeiro testamento que um avô pode deixar. E nesse instante, quando finalmente entenderem, sentirão que eu nunca parti de fato, apenas mudei de lugar dentro de vocês.
E quando já não houver meus braços para abraçá-los, haverá sempre minha palavra. Haverá sempre a memória. Haverá sempre este amor, que não precisa de corpo para que se saiba o quanto foi imenso, e o quanto influenciou para ser perpetuado.
E se o tempo ainda me conceder a graça de escrever outras vezes mais pra vocês, e para os outros netos que virão, deixarei novas palavras, novas histórias, novos testemunhos de amor. Mas se não me for dado esse tempo, que esta crônica sirva também a eles, netos ainda sem nome, mas já formados nos meus ideais e na herança invisível que o afeto perpetua.
Dedicatória
Meus queridos Samuel e Sofia,
quando um dia lerem estas linhas com a compreensão dos sentimentos que elas descortinam, quero que saibam: ser avô de vocês tem sido, e será para sempre, o milagre mais sublime da minha existência.
Vocês me ensinaram, e ainda me ensinarão, que o tempo não é só declínio, é também ressurreição. Que a vida não se mede em anos, mas em instantes de ternura. Cada riso que damos juntos agora, cada segredo que guardamos, cada história que lhes conto, ou que ainda contarei, é a parte de mim que nunca morre.
Ainda que hoje não compreendam o alcance destas palavras, porque são muito crianças, chegará o tempo em que as entenderão. E quando esse momento chegar, se eu ainda estiver ao lado de vocês, que sejam memória viva do nosso presente. Se já as lerem sem a minha presença física, que sejam então abraço, companhia e certeza de que meu amor não conheceu limites de tempo nem de espaço.
Vivam com coragem, como Sofia me ensina. Vivam com serenidade, como Samuel me ensina. E nunca deixem de amar os filhos de vocês, e de ensinar os filhos deles a amarem os filhos dos filhos, com a mesma intensidade com que eu os amo.
Este é o meu testamento invisível: vocês são e sempre serão a minha eternidade.